História

Uma história dos quadrinhos paraibanos


1. O início da aventura

Henrique Magalhães
Criado em agosto de 2016
Atualizado em 18/12/2023

A referência mais antiga que se tem dos quadrinhos paraibanos remonta o ano de 1963, quando Deodato Borges lançou a revista As Aventuras do Flama. Impressa em clichê, o tradicional sistema de impressão “à quente” utilizado para a publicação dos jornais diários, a edição de uma revista em quadrinhos nesse processo não era algo comum, pois além de trabalhoso era muito caro. As Aventuras do Flama tinha o formato no chamado “padrão americano” (em torno de 17,5x25cm), 40 páginas em preto e branco, capa em duas cores. Deodato se lançou numa aventura digna de seu herói, para realizar o sonho de todo quadrinistas e satisfazer a expectativa do público.

Antes de veicular seu personagem numa revista em quadrinhos, Deodato já tinha conquistado uma legião de fãs em todo o estado por meio de seu programa de rádio. As Aventuras do Flama era uma versão local de Jerônimo, famoso personagem de uma novela radiofônica transmitida em âmbito nacional.

   
As Aventuras do Flama, revista de Deodato Borges

As Aventuras do Flama era uma novela policial com sequências diárias, que Deodato transmitia pela Rádio Borborema, de Campina Grande, no início dos anos 1960. O programa tinha um apresentador – o próprio Deodato –, que fazia jogos com os ouvintes com distribuição de brindes. A revista do Flama foi lançada para presentear o público, tornando-se imediatamente um grande sucesso. Segundo Deodato, o programa tinha um índice de audiência próximo dos 100%, o horário da novela foi até alterado, pois as crianças só iam à escola depois de o Flama resolver mais um caso (Audaci Junior, 2006).

Deodato lembra que os primeiros 1500 exemplares foram vendidos nas portas da rádio. Ao término do capítulo em que a revista foi anunciada, centenas de crianças invadiram a emissora. Conforme Audaci Júnior (2006), as edições nem chegavam às bancas. Apesar de não ter saído mais que cinco edições, a revista As Aventuras do Flama é tida como uma referência para os quadrinhos paraibanos, sendo ao mesmo tempo a primeira revista e o primeiro personagem criados no estado. O Flama correspondia ao estilo dos quadrinhos de heróis da época, com aventuras maniqueístas, onde os papéis do bem e do mal estão claramente representados, e que mostra um tanto de ingenuidade ao abordar as tensões sociais.

O personagem de Deodato inspirava-se em Jerônimo, o herói do Sertão, criado em 1953 por Moysés Weltman para a Rádio Nacional. A rádio novela, com influência do faroeste estadunidense, ficou no ar por 14 anos e fez tanto sucesso que logo foi adaptada para a televisão e para o cinema. Em 1957 foi lançada a revista em quadrinhos com o personagem pela RGE - Rio Gráfica e Editora (atual Globo), escrita pelo próprio Moysés Weltman e desenhada por artistas como Edmundo Rodrigues e Flavio Colin.

No entanto, a maior influência do Flama veio mesmo da personagem O Espírito (The Spirit), de Will Eisner. O herói mascarado tanto em Eisner quanto em Deodato lembra a figura dos super-heróis, mas é com habilidade física e deduções intelectuais que o personagem se vale para resolver as situações de crimes, furtos e atentados à ordem estabelecida. É interessante também observar que o próprio Deodato se retrata no Flama, fazendo uma ponte entre ficção e realidade e mostrando o grau de envolvimento entre o autor e sua criação.

Analisando o contexto do surgimento dos quadrinhos na Paraíba pode-se considerar a iniciativa de Deodato como um grande feito. Na época, assim como na atualidade, os grandes centros produtores do país se concentram no Sudeste, onde se situam as editoras que lançam as publicações de circulação nacional. Ao contrário do livro, que é intemporal, as revistas em quadrinhos, bem como os jornais e demais revistas, são publicadas em fascículos periódicos, que precisam ser consumidos num curto período, dando vez a novas edições. Esse círculo leva as editoras a investir nos títulos que têm mais circulação e retorno imediato, que trazem a melhor margem de lucratividade.

São os quadrinhos importados os que oferecem as melhores condições para o investimento editorial por vários motivos compensatórios que se impõem aos quadrinhos nacionais. A produção estrangeira chega ao país como cessão de direitos autorais, tendo já pago todo o processo produtivo, o que reduz o seu custo. Por outro lado, os personagens usufruem de ampla inserção na mídia, seja por meio de veiculação de desenhos animados, seja pela circulação em produtos derivados, como roupas, cadernos, brinquedos, alimentos etc.

Essa superexposição do personagem de certo modo garante a fidelidade do público, desperta o interesse sobre seu universo e estimula o fetichismo e o consumo. Além disso, goza de uma eficiente rede de distribuição de tiras publicadas nos jornais diários com alcance mundial. Esse processo, comandado pelos syndicates, as distribuidoras de quadrinhos dos Estados Unidos, tem efetivamente inibido o fomento dos quadrinhos nacionais e se imposto por sua hegemonia como um típico produto da indústria cultural.

Contudo, não se pode deixar de considerar que em muitos momentos da história dos quadrinhos nacionais nossos autores travaram uma luta de resistência utilizando o próprio mercado para a afirmação de uma obra cultural autêntica. Foi assim no início dos anos 1960 com a revista Pererê, de Ziraldo e com as personagens de Maurício de Sousa, nos jornais e posteriormente em revistas. No Rio Grande do Sul surgiria a Cepta (Cooperativa e Editora de Trabalho de Porto Alegre), que funcionaria como editora e distribuidora de tiras de autores brasileiros.

Também podemos citar a revista Fradim, de Henfil, lançada na década de 1970 pela editora alternativa Codecri, a mesma do jornal Pasquim. Com Henfil os quadrinhos chegam à fronteira da charge por seu conteúdo essencialmente político, com críticas à decadência social e ao regime de exceção.

A ebulição política ocorrida nas décadas de 1960 e 1970 no país viera soterrar muito da ingenuidade e da fantasia veiculada nos quadrinhos até então. Até mesmo os super-heróis, que seriam resgatados do ostracismo em que tinham caído no período posterior à Segunda Guerra Mundial, ganharam um novo enfoque, trazendo em seu bojo as problemáticas que refletiam as questões do quotidiano.

Temas antes intocados, como racismo, sexo e política, passaram a ser abordadas de modo a inserir-se no contexto dos novos tempos. Personagens como Homem Aranha Demolidor, grupos como os X-Men e Quarteto Fantástico, além dos quadrinhos underground e os europeus de teor adulto deram novo fôlego a uma indústria que parecia destinada ao ocaso pela popularização da televisão e do desenho animado.

As Aventuras do Flama representam um período anterior a esses novos tempos, ou o final de um tempo onde o papel do herói, com sua onisciência e onipresença, era ainda um referencial intocável para a juventude. O justiceiro imbatível e inquestionável, o paladino solitário a trazer à ordem os desvios sociais logo se tornaria uma obsolescência frente à complexidade do mundo que se descortinava.

A obra de Deodato, contudo, não deve ser vista como o último sopro de um tempo prestes a desaparecer. Quando de sua criação, era esta ainda uma vertente que se impunha na indústria cultural, com inúmeras publicações circulando nas bancas, algumas até mesmo de produção nacional, como a citada Jerônimo.

Deodato se destaca pela iniciativa pioneira num estado completamente alijado dos meios de produção. A publicação da revista As Aventuras do Flama pode ser considerada um capricho do autor e um regalo para os fãs, não necessariamente uma pedra fundamental para a criação de um mercado. As dificuldades de produção na Paraíba eram e ainda são imensuráveis e a revista só teve alguma repercussão porque estava calcada no programa radiofônico, que mantinha grande audiência e bom número de fãs. Se o Flama fosse concebido primeiro para as histórias em quadrinhos, certamente não teria sucesso de vendas sem a “propaganda” da rádio (Audaci Junior, 2006).

A obra de Deodato ganha importância por sua capacidade empreendedora, que dispunha apenas de recursos primários de impressão (os clichês de chumbo) e pela sensibilidade de enxergar um público potencial. Num contexto nacional, tornou-se um marco para os quadrinhos paraibanos e uma expressão excêntrica dos quadrinhos feitos na periferia da periferia mundial.

Uma década mais tarde, em 1973, Deodato voltaria à cena, como editor de cultura do jornal O Norte, de João Pessoa, com circulação estadual. O Norte, da empresa Diários Associados, que acabara de renovar seu parque gráfico, passava a ser impresso em offset. Essa mudança ampliou as possibilidades gráficas do velho jornal composto em clichê e linotipia. Deodato trazia uma novidade para nossa imprensa paraibana, as tiras de quadrinhos, já populares nos grandes jornais de todo o mundo, e a crítica especializada, comentando em uma coluna diária as novidades do mercado de quadrinhos e analisando as obras clássicas.

Como editor de cultura de O Norte, Deodato passou a publicar além de tiras de Maurício de Sousa os personagens satíricos paraibanos Adub, o camelo, de Juca e Marcos Tavares e Planeta Maluco, de sua autoria e o faroeste Shangai, de Richardi Muniz. Depois seria o mentor de toda uma geração de quadrinistas ao criar o suplemento infantil O Norte em Quadrinhos e abrir as portas do jornal para uma legião de jovens autores e de personagens da terra.

Marcelo Alencar (s/d. p. 10.), editor do Jornal HQMIX, relembra que em dupla com o filho, que ganharia fama mundial com o pseudônimo de Mike Deodato Jr., Deodato produziu histórias de ação e ficção para várias revistas no Brasil e no exterior. Em 25 de agosto de 2014, após enfrentar uma série de problemas de saúde, morreu aos 80 anos de idade durante uma sessão de hemodiálise. Seu legado permanece em sua obra, que se tornou referência para os quadrinhos paraibanos e denomina um prêmio outorgado pelo Studio Made in PB.

Referências

Alencar, Marcelo. Adeus, Canini e Deodato. In Jornal HQMIX n. 4. São Paulo: p. 10.
Audaci Junior, J. Riscos no tempo: 40 anos de história em quadrinhos na Paraíba. João Pessoa: Marca de Fantasia, 2006.

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Janeiro de 2024